Os preconceitos fluem
Acontece em alguns países que presidentes, ou reis, exploram a estrutura da sua terra para tomar mais poder. Felizmente, há sempre poderes contra esses processos. Quando o tempo decorre, a frequência das manifestações nas ruas aumenta. Nestas, os grupos ativos zombam dos deputados, dos ministros e, principalmente, dos líderes do governo. Mas também, as manifestações são mais construtivas do que isso, pois dão propostas de como consolidar, ou, às vezes recuperar a democracia.
O Wilson filosofava sobre isso ao mesmo tempo que os pingos da chuva batiam no toldo do café. Estava finalizando o seu segundo cappuccino tradicional junto com um pão na chapa. Naquele momento, viu a sua amiga Lindsay no outro lado da rua. Ela olhou à esquerda, à direita e mais uma vez, rapidamente, à esquerda, arranhou um dos sapatos na calçada, e atravessou a rua roendo uma casca de pistache na sua boca. Quando viu ele, acenou calorosamente. O Wilson suspirou. Sem perguntar se estava ok, a Lindsay sentou-se à mesa do Wilson. No início o dialogo foi truncado, trocavam frases sem sentido entre si. Os minutos transcorriam. As palavras vazias fluíam e eram jogadas em cima da mesa e, em seguida, voavam ao ar. O Wilson percebia em silencio: os assuntos coloquiais acabarão em breve. Por isso, simultaneamente, ele pensava sobre qual seria o próximo tópico do bate-papo.
É verdade, resolver dois, três ou quatro problemas mentais ao mesmo tempo sempre é bastante comum para ele, e todo o mundo confirma que ele é uma pessoa simultânea. Ele concorda, embora as feministas acreditem que somente mulheres tenham essa habilidade. Por toda a sua vida, a predisposição humana de pensar em duas (ou mais) coisas ao mesmo tempo o impressionava e o fascinava. Também gostava do nível cognitivo mais alto, metapensamento, que significa pensar sobre os pensamentos e como o humano os formula. A Lindsay interrompeu as suas divagações:
- Vi que estava pensando quando cheguei.
- Estava?
- Sobre o que?
O Wilson tentou explicar as ameaças à democracia para ela, assim como o conceito de metapensamento. Escolheu palavras comuns, bastante fáceis, para fazer um resumo. A Lindsay ficou confusa. Para simplificar mais, ele desenhou alguns retângulos e círculos e escreveu os conceitos principais na toalha de papel da mesa. Ainda parecia que ela não compreendia nada. Ele agiu rapidamente, rasgou a toalha em pedaços e com eles construiu um castelo, semelhante a um mapa mental. Coloriu o edifício em ferrugem vermelha. O olhar da Lindsay continuava ausente. O Wilson ficou frustrado. Com o seu marcador amarelo, ele (quase agressivamente) decorou a porta do castelo com um príncipe charmoso. Distinguiu uma leve contração no canto da boca da moça e os olhos, atrás das lentes turquesa da mulher, acordaram um pouco.
O resumo sobre as ameaças à democracia e sobre metapensamentos era como se o Wilson quisesse contar um conto para ela. Os dois assuntos eram complexos, ele constatou consigo mesmo, mas agora ele não conseguia simplificar mais o raciocínio. A Lindsay ainda tinha problemas para entender os conceitos. Os olhos dela estavam fixados na construção sobre a mesa e os lábios tremiam frouxamente. O Wilson vislumbrou um brilhante reluzir num dente. Ela enrugou a testa, coçou o seu cabelo loiro. Os seus bíceps tornaram-se tensos, o que alterou as imagens das tatuagens nos braços. Parecia que todo o corpo estava pensando (exceto as mamas, cheias de silicone, que não reagiam). O Wilson sabia bem que ele estava exalando a preconceitos e ficava mais consciente disso quando via a moça a sua frente.
- Amiga, não zoa comigo! Você não sabia disso?, ele disse naquele momento.
- Vou te dar uma dica: olha pros lados! Veja a vida, amigo!, sugeriu a amiga, continuando a roer a casca de pistache.
- Por que está roendo essa casca o tempo todo?
- Porque gosto!
- Acha que é um esquilo?
- Talvez seja, eles são lindos e tranquilos. E quem sabe, na vida anterior, possa ter sido uma fofa como eles.
O Wilson continuou:
- Quer fingir que o movimento democrático não é importante?
- Pode ser, não sei. Quem se importa?
- Escuta: as mensagens antidemocráticas estão ressoando no mundo inteiro e você está roendo cascas e enchendo o seu corpo com silicone e imagens diferentes, sem se preocupar...
- Carpe diem! Não se preocupe com o sistema político e nem com os políticos! Eles, nesse sistema, só lavam as mãos uns dos outros. Corrupção, meu amigo!
- Parece que você pensa que o mundo gira em torno de seu umbigo!
- Como assim? Não entendi...
- Você tem uma opinião sobre a corrupção e os políticos, mas não se preocupa com o sistema político nem com as eleições...
O Wilson achou que, em breve, a casca de pistache quebraria um dente dela. Estava frustrado, sem saber como continuar a conversa. Ela o salvou e continuou:
- Estou desfrutando a vida, as festas, as férias e o futebol. O que seria melhor do que ir à praia, e lá, tomar uma cervejinha? Aproveitar o sol. Nadar no mar. Flertar com os moços musculosos do meu guarda-sol. E à noite dançar nos clubes até o sol acordar.
A Lindsay disse ainda:
- Adoro também assistir um jogo de futebol. Ver as pernas peludas dos jogadores. Os peitos largos deles. Como os tufos de grama são atacados por pés fortes. A energia e a potência do campo me fazem cheirar a testosterona misturada com o aroma da pipoca doce do meu cone.
Na mente do Wilson havia só um desejo: pare, amiga, não quero ouvir mais. Mas, a Lindsay continuou a declamar:
- Falei pra você sobre as minhas férias no ano passado? Fui para Europa por um mês. Sozinha? Não, claro que não. Quem tem dinheiro pra viajar sozinho para Europa? Eu não. Fui convidada pelo meu vizinho. Homem bonito, sempre vestido num terno Armani, acompanhado de um relógio, no seu braço, que parece ter um quilo. Ele, como eu, adora champanhe e ostras. Comemos foi-grais e tomamos vinho Sauterne em Paris. Madrid nos ofereceu tapas deliciosas. Vimos as catacumbas em Roma, nojentas, cheias de cadáveres. Ficamos bêbados com litros de vinho verde em Lisboa. Nos identificamos com os bonecos de cera no museu Madame Tussauds em Londres. Devoramos chocolates em Bruxelas. Ficamos na fila pra um museu em Amsterdã... Que pena, não me lembro de todas as cidades. Mas tenho milhares de selfies de onde fui. Posso mostrar pra você.
- O museu em Amsterdã, era com pinturas de Van Gogh?
- Van Gogh?
- Sim, Van Gogh.
- Quem é ele? Artista? Jogador de futebol? Blogger? Um surfista?
- Burra!, pensou o Wilson.
Ele desistiu de explicar os dois assuntos: a ameaça à democracia e o metapensamento.
Naquele instante, entendeu porque prefere um homem sem tatuagens, sem um corpo musculoso, sem Botox e silicone. Gostaria da companhia de um homem que saiba para qual museu está esperando para entrar.
Escrito num café em Brasília