Para onde os ventos sopram

As fachadas fizeram-me sentir a euforia, a alegria e o fluxo, como se as radiações do sol passassem por uma jarra de mel silvestre. Via as casas laranjas como se fossem a única fruta colorida na cidade. Essas caixinhas, com só dois ou três andares, estavam cercados dos "irmãos" altos em todos os tons cinza e preto. Era como se as fachadas laranjas e os adornos como estuques e portas quisessem iluminar a rua e atrair os pedestres que passavam. Havia um brilho de chamas de fogo e, para mim, uma aura que emite um sabor que me fez lembrar os dias quando via e comia caju em Ceará. O caju com sua casca alaranjada: fruta temperamental e saborosa. No banco, em frente a uma pastelaria, anteriormente habitadas por Leo Pastel, e provisoriamente por Ana Maria Pereira, imaginei as suas histórias e as suas vidas que se tornaram uma lenda na cidade.

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Era outono na cidadezinha no litoral, quando os aldeões encontraram uma mochila de tecido com gatos e pássaros bordados. Ela estava numa pedra de granito gastada pela água. Dentro da mochila, havia uma folha, marrom e amassada, com letras pouco legíveis:

"O meu nome é Ana Maria. Eu e mais de dez milhões no meu país têm o mesmo nome. O meu sobrenome é Pereira. Ele é igualmente o mais comum no país. Não sou alta nem baixa. Meu corpo não é gordo. Não é magro. Só um corpo. Aceito-o. Os meus olhos são cinzentos. A minha pele não tolera sol. Os meus lábios faltam batom. Sei que ele os cobriria. Caminho muito. O cimento da calçada não quer deixar os meus pés. Não ando rápido nem devagar. Olho sempre para frente quando caminhando. Os prédios ao longe das ruas não existem para mim. Não tenho interesse em ver pessoas na rua. Vejo só gatos. Não há nada tão bonito e fofo como gatinhos. Vejo também flores lilases, rubis e vermelhas. Gosto mais de orquídeas. Ouço os pássaros. Eles cantam para mim. Cresci na serra. Meus pais tinham um sítio pequeno numa aldeia com 2000 habitantes. Ali, todos conheciam todos. Os meus pais tinham que trabalhar com outras coisas também. Trabalhavam todos os dias de manhã cedo até tarde da noite. Eu gostava disso. Depois da escola, tinha algumas horas sozinha em casa. À noite, a minha mãe cozinhava. Sempre em silêncio. O calor do cozimento nunca dava a ela bochechas rosadas. Na sala, sentava o meu pai. Não fazia nada além de fumar, beber cerveja e ver TV. Gostou jogos de futebol. Deixei a casa e a vila quando terminei a escola primária. Não sabia para onde os meus passos me levariam. Não senti falta de nada de lá. Exceto a gatinha que eu adorava. Ela se chamava Niña."

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Na capital do estado, havia dez bairros, como se fossem cidades pequenas na cidade. Cada um tinha a sua vida e os seus habitantes. Por isso, os moradores geralmente cumprimentavam os outros residentes com algumas palavras. Nesse bairro, todos lembravam-se bem de que, nas ruas e nas calçadas, havia uma mulher que caminhava todos os dias. Ela parecia ser diferente, embora parecesse ser uma mulher qualquer. Estranho. Nunca respondia os cumprimentos, e, os cidadãos perguntavam-se: "Quem é essa mulher passeando nas ruas todos os dias?" Todos quisessem saber onde ela morava e de que maneira recebia o seu dinheiro. Um dia, sem sol nem chuva, sem frio nem calor, a rua sentiu falta dos passos dela.

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Os ventos, e talvez Deus, tinham-na levado para um lugar no litoral. Para a cidade onde as ondas faziam barulho, [onde] as fachadas das casas eram desgastadas e onde a maresia preenchia todos os cantos. Isso aconteceu no fim de maio, quando o inverno capturou a cidade: estava bastante frio, chuvia forte e o vento apertava-se entre os prédios ao longo das ruas. Folhas caíam das árvores, ramos quebravam e um grande número de telhas despencava dos os telhados. Os moradores da cidade ficaram em casa, mas, na rua, estava a Ana Maria, como se fosse um dia como os outros. Sem olhar ou perceber, ela passou por prédios de dez e quinze andares no centro histórico da cidade. Na frente de quase todos os prédios, as calçadas estavam cobertas de sacos, garrafas plásticas, folhas e alguns pedaços de metal. espremida entre os arranha-céus, ficava uma casa de somente dois andares. Ela estava iluminada num tom laranja. Em frente à casa, havia duas laranjeiras e, surpreendentemente, nenhuma das folhas tinha caído na rua, e a calçada estava sem lixo. Acima da porta, havia uma sacada grande, e para a qual o dono saía pelas portas de vidro. As quatro janelas estavam colocadas simetricamente, e as esquadrias delas eram como chantilly: fofas e brancas. As persianas de madeira sólida que tinham cor de branca. Além disso, a borda do telhado parecia ser coberta de creme de leite batido. No telhado, ficava um pináculo e, no topo dele, um galo que olhava para tudo e todos. A casa era como um bolo de laranja com velas no topo, que já está pronto para ser servido no aniversário. A madeira da porta era adornada com uma maçaneta que parecia ser de ouro e, no meio da porta, havia uma placa aparafusada. Nessa placa, em escrita cursiva, havia um nome escrito. O nome era Leo Pastel.

Numa gaveta da casa do Leo Pastel, havia um segredo. Era um caderno com algumas linhas escritas por ele. "Embora a minha mãe nunca tenha dito que me parecia com um pastel doce, o meu nome é Leo Pastel. Em vez disso, ela provavelmente me descreveria assim: o nariz preenche uma grande parte do rosto dele, e a ponta pende como um pingo. A boca larga quebra a beleza, mesmo que o sorriso seja bonito. O queixo é marcado e, na barba que o cobre, um fio nunca está mais longo do que os outros. No verão, o cordão de ouro dá a Leo uma linha branca no pescoço, onde o sol, na praia, nunca alcançava. As calças, bermudas e camisas ele deixa que sejam passadas a ferro todas as manhãs. As cores das roupas contrastam com a sua pele de cor chocolate ao leite. Para ser sincero, conclui Leo Pastel, a minha mãe diria: ele não é lindo, embora seja genial e criativo."

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Anos atrás, a cidade lembra-se bem, três caminhões bloquearam a calçada em frente à casa laranja. Era o Leo Pastel que, como numa intervenção, fez a sua entrada para a sua moradia. Alguns dias depois, todos os cidadãos do município litorâneo sabiam que a casa havia sido ocupada por ele. Sem saber, fantasiavam sobre as salas da casa e os detalhes delas: o sofá branco de couro, a mesa de mármore com rubis; as molduras, com intársia dourada, que enquadravam os espelhos; as urnas antigas da China, fixadas nas cômodas rococós. No chão, viam, ou, mais corretamente, imaginavam, tapetes genuínos do Irã, de lã grossa, com padrões de flores florescendo, sóis brilhando e tigres caçando na savana. Do teto da sala, a coroa de cristal da Tchecoslováquia espalhava a sua luz através das janelas para a rua. Os cidadãos tinham a certeza, embora ainda não pudessem verificar, de que no banheiro havia sido desinfetado e de que nenhum dos artigos higiênicos eram visíveis. Talvez houvesse um cofre no banheiro. Se tivesse, seria bem escondido. Não era necessário especular o que havia nessa caixa, mas podia ser joias, ouro e dinheiro. Os moradores da cidade faziam balões de fala preenchiam-nos com suposições. As pessoas penduravam as camisas, os calções e as jaquetas nos armários do Leo Pastel; colocavam as roupas íntimas nas gavetas dos cômodos; deixavam os chapéus de Stetson e as gravatas de seda nos ganchos atrás da porta do quarto. Naquele tempo, toda a cidade presumiu que conhecia bem o Leo Pastel: a história da família, a carreira e os hábitos da sua vida. O que as pessoas desconheciam era a vida amorosa dele, caso ele tivesse uma vida amorosa.

O Leo Pastel estava no segundo andar da casa cor de laranja, descansando em pé depois do almoço. Naquele dia, comeu mais tarde do que de costume, mas os outros hábitos foram mantidos de acordo com as rotinas dele: na toalha de mesa de linho, estavam os candelabros, os talheres de prata e a porcelana francesa. Como sempre, comia três refeições acompanhadas de duas taças de vinho. Preferia vinho tinto, da qualidade reserva, e, embora fosse um intelectual, tinha a certeza, como algumas pesquisas mostravam, de que o tinto era bom para a saúde. Acabava o almoço com um café expresso que, como ele sabia, era cheio de antioxidantes. Em vez disso, de só supor, teria sido melhor se os moradores da cidade tivessem visto esse espetáculo.

De pé, entre as duas cortinas drapeadas, ele podia ver o que (não) acontecia fora de sua residência. Naquela cidade deserta, escura e triste, que acabou de ser atingida por uma tempestade, ele vê, ao longe, uma silhueta, mas, depois de alguns minutos, a imagem fica mais clara. Via uma mulher. Estava sozinha. Movia-se de forma constante ao longo da rua, sem ver os riscos de cair na calçada molhada, a bagunça do lixo ou o risco de que um galho caísse na sua cabeça. "Em alguns minutos, é provável que essa pessoa, com a sua mochila pequena na qual estavam gatos e pássaros bordados, passe em frente a minha casa", o Leo Pastel deve ter pensado assim. Isso foi o que aconteceu, mas ela parou na casa laranja, na porta de carvalho. Ficou ali, abismada com o que via a sua frente. "Tem que ser um presente de Deus, uma revelação maravilhosa", eram as palavras e os pensamentos dela. De repente, a porta foi aberta, e um príncipe apareceu.

Faltam palavras do Leo Pastel sobre a razão que fez Ana Maria entrar na sua casa. Por esse motivo, as fofocas tinham que reconstruir todo o processo: sem pensar ou refletir, ela entrou na casa do senhor. Ele fechou a porta e apresentou-se: "Leo Pastel. Muito prazer em conhecer você". Ela sussurrou: "O meu nome é Ana Maria". Os olhos dela se tornaram pires de chá, assombrados Duas palavras seguiram as cinco palavras anteriores: "Que grandeza!". Depois, nenhuma palavra foi dita. Alguns dias passaram, e eles ficaram sob o mesmo teto. Juntos tomavam o café de manhã, almoçavam e jantavam. Na mesa, ela não sabia o que dizer, e o hábito do Leo Pastel era comer em silêncio. Os dias passavam-se, e ele nunca perguntava nada ou a ela, mas parecia que ela estava satisfeita. E ele estava também. A Ana Maria lembrava-se: "Quando era criança, os meus pais sempre diziam que é importante ajudarmos e apoiarmos uns aos outros. Embora nunca os tivesse visto fazer alguma coisa, achava que era bom". Por isso, nos anos seguintes, ela continuava a cozinhar, lavar as roupas e fazer a faxina o dia todo. O casal raramente saía de casa e, quando isso acontecia, ela ficava dois passos atrás dele. Isso não era um problema para ela. Aceitava sem sorriso nem lágrimas.

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Era um dia de verão. Na cabeça de Leo Pastel, havia um chapéu com uma aba larga e um óculos de sol para se proteger. Embora todo o mundo o visse, ele não queria ver os outros na rua. O senhor Leo Pastel chegou para casa de um táxi, do qual saiu e atravessou a rua. No meio dela, um Mercedes o atropelou. Faleceu imediatamente.

Às vezes, os acidentes acontecem, por isso Ana Maria não ficava triste nem feliz. Ela continuava a cuidar da casa por mais um tempo. Vivia um dia de cada vez. Achava tranquilo. Não se lembrava muito do tempo com o Leo Pastel, embora a comida fosse boa e a sua cama fosse confortável. Um dia, Ana Maria lembra-se de uma novela curta sobre um casal que, quando estava chovendo, sempre ficavam sob o mesmo guarda-chuva. Lá, juntos, eles podiam ouvir os pingos acariciarem o tecido. Isso nunca foi uma realidade para Ana Maria e Leo Pastel. Ela gostou da novela e o moral da a história. Talvez essa fantasia fosse uma utopia. Não sabia.

O casal Ana Maria e Leo Pastel viraria um mito naquele bairro, e as questões seriam mais numerosas do que as respostas sobre a sua vida juntos e sobre a morte dele. Os moradores lembravam-se bem de que a Ana Maria deixou a casa laranja no fim de um dia no início do verão. Nas costas, ela carregava a mochila com gatos e pássaros. Era provável que ela fosse levada pelo vento para o seu próximo destino.



Inspiração enquanto dava passeios em São Paulo e em Porto Alegre.