Quando o mundo se abre

O que ela via, e o que acontecia fora de sua janela, tinha criado a sua cosmovisão, era o mundo inteiro de Maria José. Na verdade, passava a maior parte do dia olhando para os campos de tulipas, os moinhos de vento e os canais escavados. Vista de cima, Maria José fantasia que a cidade construída pelos colonizadores deve parecer uma rede de malha fina. Era como se uma aranha enérgica tivesse tecido seus fios para pegar o seu alimento.

Diariamente, Maria José se barricava numa cadeira feita sob medida em frente à janela de vidros duplos. À primeira vista, a cadeira parecia estranha com suas pernas cuja altura era a mesma do nível da moldura da janela. Dava uma impressão trêmula, mas numa inspeção mais próxima, as pernas da cadeira eram de ferro sólido niquelado e bem ancoradas abaixo do assento de couro carmim. O encosto mínimo e ajustável também se apoiava em dois tubos de ferro niquelado. Para Maria José, essa cadeira tinha sido desenhada para adaptar-se à sua escoliose. A escoliose que contribuía para a sua corcunda. O móvel dava-lhe o conforto de ver o que ela mais queria. De lá, cumpria a sua missão, aquela que considerava ser o seu destino: atentamente seguir todos os passos dos pedestres, bem como contar e notar as bicicletas, as motos e os carros que deslizavam ao longo da rua.

A rotina do dia de Maria José começava com tomar o café da manhã à mesa da cozinha. Então, dez minutos para as nove, escalava a cadeira e se recostava para esperar o ponto alto da manhã. Mas, naquele dia, às nove horas, nada tinha acontecido, nem às nove e quinze, e o grande ponteiro em seu relógio dourado, colocado na mesa, aproximava-se do seis quando ele apareceu. Ele era o profissional que conquistava todas as portas trancadas; que pegava uma das milhares de substâncias essências em seu depósito e afiava manualmente uma cópia idêntica de uma chave; que persuadia um cofre a abrir-se nas ocasiões em que o dono tinha esquecido sua chave. Também, ele era o chaveiro que destrancou e abriu o coração de Maria José, sim, figurativamente, e que a colocou num permanente estado de amor e paixão.

Em raras ocasiões, Maria José visitava os campos de flores exóticas da cidade. Quando isso acontecia, era sempre no momento em que os turistas estavam saindo do jardim botânico e quando as guardas faziam a sua ronda de inspeção, antes de fecharem os portões do jardim. Naquela tarde, no final de setembro, ela foi dominada por uma obsessão: tinha que olhar as fileiras de flores, aquelas em todas as cores do arco-íris. Maria José deslizou da sua cadeira, seus pés pousaram no chão do quarto, foi para o corredor, tirou a jaqueta do cabide e saiu pela porta. Como sempre, evitou verificar se a chave estava no bolso da jaqueta antes de fechar a porta. "Tem chaveiros!", pensou consigo mesma. Atravessou a rua e chegou à entrada do parque. Lá, ela acenou com a cabeça para as guardas e foi, com a ajuda de seu andador, para a fileira do meio, que estava adornada com tulipas. Quando ela se abaixou para dar uma olhada de perto nas flores, as cartilagens de seus joelhos queixaram-se, e uma dor percorreu a parte inferior das costas. Ela estendeu a mão com os dedos tortos para uma tulipa papagaio vermelho e deixou a flor descansar em sua palma. Os olhos fixaram-se na beleza das pétalas, na sua caverna profunda, de onde saíam os estames e o pistilo, mas também na rede de nervura que nutria a flor. Apesar de seus joelhos terem se travado e de suas costas terem assumido uma forma de S, todos os seus nervos sensoriais deram-lhe uma grande tranquilidade, quase como um estado vegetativo. Mas, de repente, ela teve a sensação de estar sendo observada. Foi forçada a acordar e voltar à consciência. O olhar de Maria José deixou a tulipa e dirigiu-se para uma mulher que a estava observando. Essa mulher parecia estar mais interessada na senhora corcunda do que na estética e na fisionomia das flores.

Da sua posição no chão, ela fixou a vista naquela que atrapalhava sua contemplação botânica. A visitante, de pé, apresentou-se como Fernanda P. e, pensou Maria José, falava num português diferente. A clareza veio mais tarde quando a dama lhe disse que estava de visita ao Brasil e que era portuguesa. Maria José levantou-se com dificuldade e descobriu que em toda a sua altura alcançava os ombros da turista. A intensidade do olhar da mulher portuguesa envolveu a senhora corcunda, cujas bochechas coraram, a pressão arterial subiu e o corpo cresceu dez milímetros. Era como se naquele momento tivesse encontrado o chaveiro por acaso. Isso aconteceu quando ela quis provar Poffertjes num café holandês, em que, do lado de fora, havia uma bandeira azul, branca e vermelha balançando. Os olhos do chaveiro e os de Maria José falavam naquele momento uma língua repleta de sonhos e desejos.

Os pensamentos que passavam pela cabeça de Maria José eram se Fernanda P. era a curandeira que ela esperava, a pessoa que endireitaria suas costas ou a mulher que enxotaria a bactéria da tuberculose latente que repousava no seu corpo. Essa bactéria maliciosa poderia, a qualquer momento, ativar-se e colocá-la num estado em que as rotinas diárias seriam prejudicadas, onde cada respiração seria uma luta num estado febril. A sensação era a de que o encontro tinha sido um déjà-vu ou uma reencarnação (apesar de Maria José sabia bem que não tinha falecido naquele dia). Tanto faz, a presença de Fernanda P. abriu os cinco sentidos de Maria José. Através dela, uma nova visão de mundo emergiu. Ela olhou para além dos campos de tulipas, em direção à divisa do estado, e então para o oceano azul e profundo, em direção a um horizonte seguido por um outro. Era como um renascimento.



Inspirado no conto "A Corcunda" de Fernando Pessoa